[Olhar Divergente] Resenha: Crônicas da Espada e Magia




Crônicas de Espada e Magia é um livro de contos e noveletas publicado em conjunto pela Editora Arte e Letra e Argonautas. O organizador é Cesar Alcazar, da Argonautas. A ideia da coleção era apresentar um conjunto de textos dos principais autores do gênero Espada & Feitiçaria, tanto estrangeiros como brasileiros. Para quem não sabe ou não conhece, Espada & Feitiçaria é um subgênero da fantasia que envolve, de uma forma ou de outra, heróis e vilões em sanguinárias batalhas, seres sobrenaturais e, às vezes, romances tórridos. Maiores informações neste post aqui.



A resenha a seguir tenta esmiuçar esta belíssima coleção que está a serviço dos leitores brasileiros: a começar pela capa, uma ilustração sensacional de Kekai Kotaki, temos uma diagramação de primeira e um ótimo trabalho de tradução. Sem mais delongas, vamos ao livro.




A antologia começa com “O Vale do Verme”, de Robert E. Howard, criador de Conan, Solomon Kane e Kull. O conto é narrado pelo personagem James Allison, um sujeito que aparece em vários trabalhos do mestre texano e que usualmente constrói sua narrativa através das memórias do sujeito no seu leito de morte. O personagem é controverso, pois é difícil precisar quem ou o que ele é. Mas as histórias são sempre carregadas de ação e recobertas por referências, que podem passar desde as lendas arturianas até mesmo aos salmos bíblicos. Neste conto em particular, é muito interessante notar a forma como o autor descreve todo um contexto rico e desafiador sem se tornar pedante ou repetitivo. Tão difícil quanto criar um novo universo é demonstrar este ao leitor sem aborrecê-lo. Ponto para Howard neste quesito.

Depois passamos para “O Sinal da Forca”, de Carlos Orsi, um brasileiro que abraçou a Espada & Feitiçaria neste conto que se passa em uma terra fictícia, mas com fortes tintas que remetem ao nosso passado (passado, mesmo???) de intolerância religiosa. Misturando a feitiçaria com política e as maquinações do poder, temos um personagem muito bem construído, Anror, que se vê às voltas com conspirações do alto clero. Como sempre, a solução nunca é tão fácil quando nos voltamos para os problemas reais e o isolamento do protagonista em sua dor particular é um lembrete para os dias conturbados que vivemos. Em minha modesta opinião, o melhor conto entre os nossos bravos conterrâneos tupiniquins.

O próximo é “A Cidade do Sonhar”, de Michael Moorcock. Nele, somos apresentados pela primeira vez à Elric de Melniboné, um feiticeiro, guerreiro e ex-imperador que se tornou um dos principais ícones da escrita de Moorcock. Há vários elementos interessantes aqui, principalmente na construção do personagem e sua personalidade. O autor consegue estabelecer bases importantes para todo o universo que ele desenvolveria mais tarde. Diferente de Conan, Kull e Solomon Kane, que se valem muito mais da Espada, Elric é um feiticeiro e suas ações são baseadas fortemente em sua condição. Apesar de ser considerado um dos clássicos, foi o conto estrangeiro que menos me agradou.

Então viajamos com Thiago Tizzot para “A Vingança é para Todos”. Este autor brasileiro percorre o lado negro do gênero apresentando uma história de busca por justiça. A narrativa é complexa, mas, ás vezes, um pouco confusa. Nomes próprios diversos e de difícil pronúncia prejudicam o entendimento. Talvez fosse necessário um tiquinho a mais de páginas para resolver o problema.

De Fritz Leiber é apresentada a narrativa do primeiro encontro da dupla Fafhrd e Rateiro Cinzento, uma dupla recorrente do autor desde 1939. No entanto, este conto só saiu em 1971 e fica bastante óbvio que o autor se esforçou para criar um contexto factível para a reunião dos seus dois personagens. O conto, na verdade uma noveleta por causa da extensão, centra-se muito mais na união entre os personagens do que na história em si. Na minha opinião o problema reside justamente ali: o que deveria ser o fio condutor da história decepciona um pouco. A motivação para a primeira união deles e o que os leva para o clímax é, no mínimo, forçada. Dois trapaceiros não se tornam amigos tão rapidamente, a ponto de um confiar no outro em apenas algumas horas. Enfim, o conto “Encontro Fatídico em Lankhmar” ganhou o Hugo e o Nebula, logo, vale a leitura, de qualquer modo.

“Cavalos?” é um conto curto e engraçado de Max Mallman. Autor de “O Centésimo de Roma”, a fina ironia do autor escorre nas páginas do conto. A ideia aqui, me parece, não é apresentar uma história com início, meio e fim ou personagens heroicos e suas espadas reluzentes. É necessário, de tempos em tempos, rir de nós mesmos e de nossas convicções. O autor nos convida a ver que com apenas um passo nós podemos passar da galhardia à gargalhada. E que os plots da Espada & Feitiçaria podem suportar qualquer tipo de narrativa.

Então passamos ao “Crepúsculo de Dois Sóis”, de Karl Edward Wagner. Um conto muito bem escrito e interessante e o melhor da trupe estrangeira, por assim dizer. Com apenas dois personagens, somos confrontados com a natureza humana sob o ponto de vista de um “estrangeiro”, um gigante de nome Dwassllir. Duas coisas importantes me chamaram a atenção: primeiro, Kane, o guerreiro que anda sob o fio da espada, que pode ser tanto um trapaceiro quanto um herói – a sua multifacetada personalidade o transforma em um humano “real”, cheio de dúvidas; segundo, a filosofia do gigante em confronto com a condição humana de Kane – as questões que regem o florescimento da humanidade em detrimento às outras raças muito tem a dizer em relação a nós mesmos.

“Anta das Virgens” é um conto de Ana Cristina Rodrigues e se passa no universo Finisterra, criado pela própria autora. A história se passa em uma península ibérica alternativa, mas a narrativa tem a verdade do nosso próprio passado. A ambientação das terras de Laurinda, a guerra que assolava os impérios Luso e Espanhol nos séculos passados, o preconceito com as “curandeiras”, tudo isso faz jus à condição de historiadora da autora. Quando a magia entra em cena, não é de forma abrupta ou acessória, mas como outra força motriz para a narrativa que desenvolve. Gostei dos personagens e das suas motivações, principalmente por fugir do lugar comum do “E viveram felizes para sempre...”. O segundo melhor conto dos tupiniquins.

George R.R. Martin, aclamado mundialmente por causa das Crônicas do Gelo e Fogo, escreveu um conto intenso e quase introspectivo chamado “As Canções Solitárias de Laren Dorr”. Aqui, o pessimismo do autor frente o mundo aparece com força máxima. A ideia do eterno agonizante, registrada em tempos imortais com a saga de Prometeu, é apresentada de forma lírica, mas, fria. Não há como não engolir em seco ao final da história.

“O Bebedor de Almas”, do paulista Roberto de Souza Causo, apresenta uma fantasia que também se passa na península ibérica, em um tempo não definido. No entanto, é fácil perceber que estamos lidando com a ocupação dos mouros e, assim, estabelece-se de forma rápida e indolor uma contextualização histórica. A delicada questão política é pano de fundo para uma história entre o bem e o mal, onde um demônio assola Granada. Eu gostei, particularmente, do final e de sua visão dos acontecimentos que moldavam o mundo naquela época.

“Onde Mora a Virtude” é o primeiro conto que tenho a oportunidade de ler de Saladin Ahmed. Ele é um autor arábe-americano (um sujeito que nasceu na américa com a cor errada, por assim dizer... me desculpe, mas afro-americano, arábe-americano, krypton-americano, é de um eufemismo de doer para a simples e escarrada discriminação) que escreve fantasia com, obviamente, um toque oriental. Ele estabeleceu um mundo imaginário (Reinos da Lua Crescente), onde se passa vários dos seus contos. Se você quer um magnífico exemplo de como construir uma história que envolva choque de gerações, a velha, mas atual, briga entre o aprendiz e o mestre, então este conto é para você. Dotado de uma fina ironia, que mistura sarcasmo com a bruta realidade, a história é deliciosa de se ler. Vale cada parágrafo.

O livro possui 344 páginas e, na média, é muito superior a grande maioria das antologias que tenho lido. Ao reunir tantos talentos em um só volume, prova-se, mais uma vez, que a escrita e a capacidade de edição florescem em qualquer lugar. É só querer buscar.

Boas leituras!

A.Z.Cordenonsi
Pai, marido, escritor, professor universitário 

Tem dois olhos divergentes e muito pouco tempo
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Ideval Junior

Capricorniano. Blgoueiro nos tempos livres. Adimirado pela sua Estante. 18 anos.

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