[Olhar Divergente] A Cartografia Fantástica

Os mapas sempre estiveram no imaginário dos escritores de fantasia, fincando seus estandartes de linhas e cores na alta-fantasia, um subgênero representado por histórias em mundos imaginários e distintos do nosso próprio. Fãs da literatura fantástica dedicam-se horas à exploração dos cantos mais remotos dos mapas desenvolvidos pelos seus autores favoritos. Ferramentas como wikis e elementos de indexação são cada vez mais exploradas para acrescentar detalhes aos livros que descrevem as realidades paralelas. Esta fascinação se tornou tão importante que alguns autores utilizam os mapas como fonte da construção fantástica. Onde Habitam os Dragões – As Crônicas do Imaginarium Geographica (James Owen, Editora UnderWorld) e o Atlas Esmeralda – Os Livros do Princípio (John Stephens, Suma de Letras) são apenas dois dos exemplos mais recentes.

A cartografia sempre se apresentou como a união entre a ciência e a arte de forma a criar uma representação balanceada de todas as informações necessárias para a compreensão de uma região em particular. Mapas antigos, como os apresentados aqui, eram considerados verdadeiras obras de arte; além de informar e representar o mundo que somente os exploradores conheciam, exibiam um sem-número de informações impregnadas dos próprios misticismos e mitos que guiavam as culturas que as criavam. Assim, monstros marinhos e mares ocultos eram comuns em mapas desenvolvidos na Europa durante os últimos séculos; antigos mapas chineses faziam referência aos deuses das águas e dos mares; mapas indianos incluíam em suas representações lugares imaginários e descrições detalhadas dos seus habitantes mitológicos.

Nem toda a história de fantasia necessita de um mapa; estes são mais comuns quando os personagens realizam viagens por diversos lugares ou quando povos distintos são apresentados durante a trama. Um mapa bem desenvolvido acrescenta elementos importantes à trama – ele pode legitimar as distâncias percorridas ou até mesmo as decisões tomadas. Uma história pontilhada por grandes batalhas pode ser enriquecida ao estabelecer um mapa topográfico da região. Não é raro que autores criarem mapas somente para si próprios, de tal forma a orientá-los na construção dos seus personagens e dos povos que constituem o mundo imaginário. As decisões tomadas pelos autores representam, invariavelmente, as duas faces de uma mesma moeda.


A primeira face pode ser explicada, cientificamente, pela geografia humana. A geografia humana explora a interação da sociedade com o espaço, o habitat, o locus. É um ramo da ciência que procura entender o espaço geográfico onde o homem vive. Sabe-se, atualmente, que os povos, em seu desenvolvimento histórico, foram fortemente influenciados pela geografia; seja pela geografia física (montanhas, mares, desertos) ou humana (povos que vivem em sua circunvizinhança). Este desenvolvimento criou padrões que são facilmente reconhecíveis pela maioria das pessoas. Você não espera encontrar hábeis marinheiros no topo de montanhas ou guerreiros sanguinários em regiões completamente isoladas (contra quem eles lutariam?). Um autor, ao criar elementos físicos, cria toda uma gama de possibilidades de histórias que podem se desenrolar naquelas paragens. É aqui que entra a segunda face desta moeda.

Para Tolkien, o seu mundo imaginário - que ele denominava Mundo Secundário - ganhava em credibilidade tanto quanto ele se aproximava do Mundo Primário (o nosso mundo). Ele chamava isso de “consistência interna da realidade”. Quanto mais ele o autor afasta deste mundo, mais difícil é para o leitor conceder credibilidade para o mesmo. Por outro lado, isto pode tolher a criatividade do autor. Segundo Tolkien, isso requer uma “destreza élfica” para saber o quanto se aproximar do mundo real e o quanto se afastar dele para se aventurar pela imaginação. Há inúmeras referências em livros e histórias de fantasia sobre cruéis selvagens que vivem nas montanhas; no mesmo cenário, porém, podemos imaginar monges em panos esvoaçantes ou gigantes de gelo. Do ponto de vista do que conhecemos do mundo real, é possível conceber estes seres vivendo em tais lugares e é interessante, para o autor, utilizar-se destas familiaridades para acrescentar credibilidade à história.  


O próprio Tolkien estabeleceu uma rica cartografia das suas criações. Ele desenvolveu alguns mapas básicos sobre a sua criação, que foram ampliados nos anos seguintes por artistas e editores. Uma região em particular de Arda (o mundo de Tolkien) sempre recebeu atenção especial por ser o cenário da maior parte das histórias, o continente peninsular (semelhante à Europa) denominado Terra-Média. A criação de Tolkien deu origem a inúmeros mapas e até mesmo a um Atlas (Atlas da Terra Média, Karen Wynn Fonstad, Martins Fontes). Tal fato é explicado pela rica exploração do autor em relação às belezas naturais que ele imaginava existir no seu Mundo Secundário. Na verdade, nas palavras do autor, “a Terra Média se baseia na minha admiração e meu deleite na Terra como ela é, particularmente a terra natural”. 


Diversos outros autores desenvolveram ou instigaram a criação de mapas para as suas obras. H.P. Lovecraft desenvolveu uma dimensão alternativa, denominada “The Dreamlands”, que só podia ser penetrada através dos sonhos. Histórias sobre esta dimensão imaginária aparecem em um grande número de contos e noveletas do autor; em várias delas, artistas convidados desenvolveram mapas regionais ou mais amplos para as histórias construídas por Lovecraft. A imagem ao lado é um desenho de Jack Gaughan  de uma edição de 1967; outra ilustração famosa, e mais contemporânea, é a de Jason Thompson.

George R. R. Martin, nas suas Crônicas do Gelo e Fogo (Leya), apresenta em seus livros um mapa simplificado de Westeros - a terra imaginada pelo autor - desenhado por James Sinclair. O mapa apresenta tanto acidentes geográficos como políticos, incluindo cidades e uma localização aproximada dos reinos do mundo de Martin. 

Já a Era Hyboriana foi um período fictício da história real criado no desenvolvimento da mitologia de Robert E. Howard, famoso pelos personagens Conan e Red Sonja. O mapa apresentado ao lado foi construído a partir de uma ilustração preparada pelo próprio autor. Diferentemente dos demais, Howard desenvolveu as suas histórias e o seu mapa em uma cronologia diferente da nossa própria Terra. O mapa, na verdade, representa a Terra durante a Era Hyboriana que, segundo as palavras do próprio autor, ocorreu antes de qualquer civilização conhecida pelos antropólogos. O autor introduziu diversas mudanças geológicas, o que reforça a ideia de antiguidade que ele procurava. 


Delyo'Rhyel - O Mapa de Thargor - link
Vários escritores brasileiros de alta fantasia também utilizam mapas detalhados no desenvolvimento de suas obras. Rober Pinheiro, um escritor cearense radicado em São Paulo, desenhou um mapa completo para o Reino de Thargor, um mundo imaginário elaborado para a saga Lordes de Thargor. Segundo o autor, “o Mapa surgiu durante o desenvolvimento do background de Thargor e depois da escrita do primeiro livro da série, O Vale de Eldor. Há uma passagem no livro que narra a criação desse mundo fantástico, e como havia muitas referências a reinos, raças e lugares, decidi criar o mapa para auxiliar visualmente o leitor durante a leitura. Inclusive, este mapa é o original, feito por mim lá nos idos de 2000 e alguma coisa". Vocês podem acompanhar o desenvolvimento da saga aqui e o blog pessoal do autor aqui.

O Mapa de Athelgard - link
Já na trama do Castelo das Águias, da autora carioca Ana Lúcia Merege, o mapa de Athelgard foi desenhado pelo seu editor, Erick Santos (Editora Draco) sobre um original desenhado pela própria Ana. Em suas palavras, "as primeiras histórias em Athelgard surgiram quando não havia mapa algum. Eram sobre uma tribo élfica, o Clã da Raposa Branca, que morava nos Penhascos Gelados, a região mais ao norte da ilha. As histórias seguintes se passavam também no norte, mas logo surgiram referências às cidades mais avançadas dos Elfos no sul, as Onze Cidades. Depois veio o leste, onde fica a Pwilrie de Cyprien (de O Jogo do Equilíbrio). O primeiro desenho do mapa quase não tinha cidades no sul, onde se desenrola a trama de O Castelo das Águias, mas elas foram sendo acrescentadas à medida em que eu precisava de localidades, rios, montanhas, florestas para usar como cenário nas histórias. De modo que o mapa e as histórias foram crescendo juntos. 
Hoje, com o mapa publicado, eu tento não citar muito lugares que não aparecem lá ou pelo menos anexar a eles referências que aparecem (tipo, "uma aldeia próxima a Siberlint"...) para não confundir o leitor. E uso o mapa na construção de personagens: se eu quero alguém que foi oprimido e tiranizado, em geral digo que aconteceu em Pengell; um domador de ursos será sempre do Oeste; um mago estudou nas Terras Férteis e assim por diante. Só tenho cuidado para não caracterizar uma raça ou os habitantes de uma região como "heróis" ou "vilões" ou criar estereótipos: Athelgard é uma terra cheia de diversidade e é isso que torna as histórias mais legais.” O site do Castelo das Águias é este e o blog pessoal da autora pode ser acessado aqui.

No meu romance "Duncan Garibaldi e a Ordem dos Bandeirantes” eu buscava uma localização que fosse, ao mesmo tempo, real e imaginária. Um local diferente, interessante, misterioso, que instigasse a curiosidade e prendesse o leitor. A minha escolha foi pela Vila Belga, um conjunto de quadras reais da minha cidade natal que ainda conservam um ar saudosista do século passado. Aplicando o meu olhar divergente às construções coloridas e aos lampiões de ferro, construí um mapa da minha Vila Belga, acrescentando elementos que serviriam a história que gostaria de contar. O resultado se encontra abaixo, em um desenho de minha autoria.
 


Independentemente da forma escolhida para retratar a realidade, seja através de mapas mais sofisticados como os de Lovecraft, ou mais simples, como os de Tolkien e Martin, a cartografia fantástica ainda será objeto de muita especulação no futuro, trazendo a realidade imaginada apenas na cabeça dos autores para algo concreto, que pode ser explorado, visitado e manipulado pelos leitores. Como simples curiosidade para alguns ou como ponto de partida para os mais aficionados, o certo é que os mapas ainda farão o deleite dos leitores nas próximas gerações. 

Por último gostaria de deixar com vocês um desenho de Dan Meth, que pretendia construir um mapa definitivo com todos os lugares fantásticos dos principais autores do mundo. 

Divirtam-se!






J.J. Abrams, diretor do reboot de Star Trek, será o diretor de Star Wars VII. É a força audaciosamente indo onde nenhum homem jamais esteve.

A Rede Globo estaria produzindo um seriado sobre zumbis, que deve estrear ainda em 2013.
Lovecraft nunca publicou um livro. Ele sobreviveu enviando contos para revistas. Somente 37 anos após a sua morte foi publicado um livro que reúnia suas obras.

A.Z.Cordenonsi
Pai, marido, escritor, professor universitário 

Tem dois olhos divergentes e muito pouco tempo
duncan garibaldi - facebook - twitter

Ideval Junior

Capricorniano. Blgoueiro nos tempos livres. Adimirado pela sua Estante. 18 anos.

Mantenha-se Conectado ao Blog